JANTAR SECRETO

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Quatro rapazes, amigos de infância, moradores em uma pequena cidade do interior paranaense, vão estudar na cidade grande (Rio de Janeiro). Ali cada um faz o que gosta ou o que pode e, após alguns anos estão, três deles, com um diploma na mão e subempregados. Fala-se em crise. Trabalha-se muito, ri-se pouco e se ganha menos ainda, além da incerteza de continuar no emprego no dia seguinte.

Após idas e vindas, depois de acontecidos vários, eles se veem com uma enorme conta para pagar na imobiliária, cujo valor está muito além dos parcos ingressos que recebem. Acontece que o rapaz responsável pelo pagamento dos aluguéis havia muito desviava o dinheiro – sem que os outros soubessem – para pagar uma prostituta. A questão era simples: teriam que pagar os atrasados, com as devidas multas, juros e correções até o dia x ou teriam que deixar o apartamento e ainda serem processados.

Para eles, arrecadar esse dinheiro no curto prazo era impossível. Um deles não tinha família, outro tinha a mãe, que era muito pobre; o terceiro havia brigado com a família. O quarto rapaz, cujo nome constava como locador do apartamento poderia, mas sentia-se na idade de resolver seus próprios problemas sem recorrer aos pais.

Os amigos querem resolver este urgente e espinhoso contratempo que caiu sobre suas vidas monótonas como uma bomba. As discussões se seguem em busca de uma saída até que alguém tem uma ideia brilhante. Sabe-se que existem, na sociedade, pessoas de muitas posses que estão dispostas a pagar somas astronômicas para praticar o canibalismo. Quem são essas pessoas? Estão em todos os lugares, basta procurá-las: profissionais liberais, artistas, políticos, empresários, ricos que vivem de rendas.

Podem – concluem – servir a estes um jantar de carne humana. Com um único jantar – fazem as contas – com dez comensais, já seria possível quitar a dívida. E tudo está a favor deles: um dos rapazes é excelente cozinheiro; outro vive o dia inteiro em frente de um computador e pode divulgar a ideia, fazer as inscrições, sem ser identificado pela polícia.

Como conseguir a carne humana? Até nisto a coisa está fácil, pois um dos rapazes é médico e trabalha em um hospital como bolsista. Basta, assim que alguém morrer, ele avisar os outros e o cadáver seria roubado do necrotério. O hospital é público, atendia indigentes e provavelmente ninguém se interessaria em elucidar o roubo de um desses cadáveres, com tantos problemas mais prementes para resolver.

E assim é feito.

Se o leitor desconfiou que falo do enredo de um romance policial está de parabéns. Acertou na mosca. Esse é, em linhas gerais, o enredo de “Jantar Secreto”*, de Raphael Montes, lançado há pouco entre nós.

Montes é um escritor prodígio: nasceu em 1990 no Rio de Janeiro e, conforme leio na orelha do livro, este é o seu quarto romance, todos policiais e de sucesso, sendo ora premiados, ora traduzidos em outras línguas ora adaptados para o cinema.

O moderno romance policial é extremamente poderoso: um autor habilidoso – e, sem dúvidas, Montes é um deles – toma um problema da sociedade e, através da trama policial, vai descendo fundo na análise da sociedade, penetrando em seus recônditos mais secretos. É difícil outro tipo de literatura ir tão longe, tão a fundo. O resultado é que esses autores põem a nu as piores mazelas da sociedade.

No caso do livro que ora tecemos esses comentários, a partir do canibalismo o autor põe a nu toda a hipocrisia da sociedade em relação ao consumo de carne em geral e não só a humana. Afinal, como os personagens dizem, comer carne humana ou de boi, de vaca, de frango, é uma questão de regra social. Por que comer uma e não a outra? Por que comer frango, peru e ficar horrorizado se em algum país se come cães com a maior satisfação? Qual a diferença? Quando essas carnes são bem temperadas, a diferença torna-se mínima.

Conforme fui lendo o livro fui pinçando alguns trechos esclarecedores. A certa altura, por exemplo, Hugo, o cozinheiro, diz:

“Olha o frango que a gente come. Cheio de toxina, inseticida, entupido de remédio, alimento transgênico. A carne de boi é um cadáver em princípio de decomposição. Vocês estão mesmo preocupados com defuntos doentes? O importante é a carne estar fresca. De resto eu me garanto.”

Cora, a prostituta, também acaba participando da trama. É ela quem diz:

“Depois de morto, todo bicho é igual. (…) Se a carne vem naquele pacote, coberto de plástico transparente, você não se importa. Pega, frita e come sem nem pensar de onde veio.”

O romancista, munido de uma lente de aumento e de um bisturi afiadíssimo, continua dissecando a hipocrisia. Um personagem dá às suas ideias um alcance social e ecumênico:

“Já pararam para pensar que o canibalismo pode ser a solução mais imediata pra fome no mundo? Quero dizer, não comemos nossos próprios mortos por uma questão cultural. Não fomos criados assim. Acontece que enterrar os mortos é um grande desperdício de carne saborosa que poderia ser usada como alimento. Mesmo na vila mais pobre da África, onde pessoas passam fome, há carne sendo desperdiçada nos enterros. Por que não comer? O que mata essas pessoas de fome é esse impedimento moral de comer os semelhantes…”

O mesmo personagem diz, mais adiante:

“A gente vive com uma dieta inconsistente, suavizada pelo sabor. Temos pena do porquinho e da vaquinha, mas adoramos um bom bife ancho. Meu pai já dizia que a beleza sempre ocorre no particular, enquanto a crueldade prefere a abstração.”

É ele ainda:

“Você sabia que para cada quilo de camarão, vinte quilos de outros animais marinhos são mortos e jogados de volta ao oceano?”

O romancista reserva para as páginas finais um golpe certeiro. Dante, o personagem narrador da história, recebe um e-mail de alguém lhe pedindo que assine um abaixo-assinado intitulado “Não à tortura de cães na China”.

Dante se compadece dos sofrimentos dos cães chineses e, embora coma carne humana e faça muitas estripulias para consegui-la, conforme narrado na história, assina a petição. Mas é ele mesmo quem diz:

“O ser humano é mesmo muito hipócrita. Sem dúvida, a maioria das pessoas que assinava aquela lista comia carne de porco, vaca e frango. A verdade é que você não precisa comer carne humana para incentivar atos monstruosos, basta curtir um bife e uma linguiça que já está dando sua contribuição para o horror.”

A mensagem é clara: quem come carne de boi, de vaca, de frango, por que não pode comer carne humana? Como diz um personagem já citado, quando se come carne não se sabe exatamente o que se está comendo. Com frequência a imprensa noticia que se come carne de cavalo como sendo de vaca ou então se dá razão ao ditado, comendo-se gato por lebre sem se perceber.

É um romance que vai crescendo na descrição nua e crua de barbaridades, conforme vamos virando as suas páginas. E toda a hipocrisia vai sendo exposta. Alguém está de estômago revirado? É um romance não recomendado para pessoas frágeis, impressionáveis ou que acreditem em Papai Noel; neste caso recomendo a essa pessoa comer um bife acebolado (de que animal? talvez humano, nunca se sabe…), depois plantar-se diante da televisão e por fim dormir o sono dos justos ou dos ignorantes, como se queira.

*Montes, Raphael. Jantar Secreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Escrito por: NILTON TORNERO