SIMPLIFICANDO A VIDA
O que acontece quando um psiquiatra, um filósofo e um monge budista fazem um retiro para conversar sobre a arte de viver?
O psiquiatra Christophe André, o filósofo Alexandre Jollien e o monge Matthieu Ricard fizeram esta experiência e se reuniram durante alguns dias em uma casa em meio a uma floresta na Dordonha (França) e o resultado de suas conversas é o livro “O caminho da sabedoria”*, recentemente publicado entre nós.
Vamos aqui, baseado em anotações colhidas no capítulo 9, “A escola da simplicidade”, desenvolver algumas ideias sobre como viver na simplicidade.
Como chama a atenção o psiquiatra Christophe, o nosso mundo ocidental obedece à lógica da acumulação. Passamos grande parte de nossas vidas empenhados em acumular coisas: bens materiais, conhecimentos (muitas vezes inúteis, acrescento), amigos na internet e em grupos sociais e aí por diante.
Somos, também, excelentes acumuladores de trastes em nossa casa. Usamos o pretexto que não devemos jogar nada fora porque podemos precisar da coisa um dia, num futuro e numa condição incertos.
Meus pais eram do ramo: acumulavam tudo. Como representante comercial, meu pai construiu no quintal da nossa casa um depósito para armazenar algumas das mercadorias que vendia. Depois, o depósito deixou de ser útil e passou a funcionar como depósito de tranqueiras: tudo que aparecia e que não servia na casa ia para lá. Não se jogava nada fora. Pneus carecas não podiam ser levados embora porque minha mãe, em um dia indefinido, iria cortá-los e dali sairiam belos vasos para plantar flores. Latas velhas e amassadas, móveis quebrados, papéis de todos os tipos, ferramentas quebradas e enferrujadas, tudo ali tinha guarida garantida. Jornais velhos se acumulavam em pilhas; quando estas atingiam um tamanho desproporcional, minha mãe consentia em vender parte no açougue, mas isto dava o maior trabalho, pois eu tinha que ver, basicamente jornal por jornal, se não havia alguma notícia importante que saíra dois anos atrás e que estava sendo jogada fora.
Chegou um dia que a tranqueira era tamanha que mal se conseguia entrar no depósito.
Havia dois armários de madeira onde minha mãe acumulava todos os vidros que apareciam na casa: de palmito, mel, compotas e outros semelhantes. Havia, calculo, uns mil vidros. Quando eu perguntava a ela para que tantos vidros, ela dizia: “Vai chegar o dia que vamos precisar deles”. Um dia, precisando guardar qualquer coisa, achei que dentro de um daqueles vidros a mesma estaria bem condicionada. Pedi-lhe licença para usar um daqueles vidros e ela me disse, triunfante: “Você fica me amolando para eu jogar esses vidros fora! Tá vendo como chegou o dia em que eles seriam úteis?”
Usamos um, provavelmente na vida toda. Sobraram novecentos e noventa e nove.
Frequentemente tomamos conhecimento de que a polícia ou a saúde pública é acionada porque um vizinho encheu sua casa de lixo, pois não joga nada fora. E então ali pululam os ratos, as baratas, as aranhas…
O escritor italiano Andrea Camilleri tem um conto em que um personagem, bastante rico, já velho e morando sozinho, acumula tudo que deveria ser descartado. Absolutamente nada é descartado. Mandou construir imensos tanques hermeticamente fechados onde são guardadas… as fezes e a urina do dia a dia. A desculpa é que, quando morrer, a casa vai para um parente que ele não aprecia, seu único herdeiro. Mas, para receber a herança, uma das cláusulas é que terá que receber todas aquelas tranqueiras e porcarias juntas, não podendo jogar nada fora…
Esses são casos extremos, mas será que não estamos já no caminho de recebermos o doutorado em acumuladores de tranqueiras?
Existem pessoas, por exemplo, que têm obsessão em tirar fotos. Vão a festas, fazem viagens, vão às reuniões familiares. Não digo que participam de tais eventos, porque realmente não participam. Ficam o tempo todo tirando fotos, dezenas, centenas delas. Depois divulgam tais fotos pela internet, por celulares, como se isto fosse a coisa mais importante do mundo. É como se cada momento da vida devesse ser minuciosamente registrado. Mas, um segundo após bater a foto, aquilo que fotografou já pertence ao passado; mas a pessoa se prende a esse passado, enquanto que a vida se vive no presente, no Aqui e Agora.
Outras pessoas acumulam roupas. Não conseguem se desfazer de uma roupa velha, fora de moda, que sabem que jamais voltarão a usá-la. Marie Kondo, a japonesa autora de “A mágica da arrumação”, é requisitada por aquelas pessoas que não conseguem jogar nada fora. Ela desenvolveu um método de lidar com o problema da acumulação desnecessária; o subtítulo do livro é chamado, apropriadamente, “A arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida”. Seu método é simples: pegamos cada peça de roupa (nova ou velha, não importa), levantamo-la à altura do peito e perguntamos: “Isso me traz alegria?” Imediatamente vem a resposta: sim ou não. Quando a resposta for “não”, simplesmente mandamos a roupa – ou qualquer objeto que seja – para o monte daquilo que deve ser descartado.
Eu mesmo fiz a experiência. Havia muitas roupas guardadas em um guarda-roupa que eu não usava e outras que eu pensava que usava, mas, na verdade, não usava. Seguindo seu método, levei todas as roupas que tinha para a sala, atirei-as no chão. Em seguida fui pegando uma por uma, levando-a à altura do peito e perguntando: “Isso me traz alegria?” Quando a última peça passou pelo processo, vi que em torno de 80% de todas aquelas roupas não me traziam alegria, incluindo aqui tanto as novas quanto as velhas. Uns três dias depois foram doadas. Depois disto tenho aplicado a método para muitas outras ocasiões. Por exemplo: diante de uma situação, que me traz sensações ambíguas, costumo perguntar: “Isso me traz alegria?” A resposta é imediata. É o coração que responde.
Desvencilharmo-nos de coisas é uma maneira eficaz de simplificarmos a nossa vida.
Mas os três autores do livro que citamos chamam a atenção: devemos nos desvencilhar de coisas supérfluas. Reconhecem que viver na pobreza não é nenhuma virtude; milhões de pessoas ainda não têm o que comer e carecem das necessidades mais básicas.
Dizem que as “crises econômicas”, das quais sempre se fala, são, na verdade, crises do supérfluo. As pessoas simplesmente deixam de comprar menos coisas das quais não precisam e isso assusta as indústrias, que vivem, em grande parte, graças aos supérfluos que fabricam. E a sociedade estimula a pessoa o tempo todo a comprar, acumular e depois de certo tempo se livrar dessas coisas para acumular outras em seu lugar. Assim, vivemos trocando de computador, de TV, de celular, de carro.
Mas, do que realmente precisamos? Certa vez um discípulo encontrou-se com Sócrates caminhando pelo mercado de Atenas. Ali era o último lugar que alguém pensaria em encontrar o filósofo, dada à simplicidade em que vivia.
_O senhor por aqui, mestre? Está procurando algo para comprar? – perguntou-lhe o discípulo.
O filósofo sorriu:
_Não, não. Estou apenas observando quantas coisas existem para comprar e que não me fazem falta nenhuma!
Outros, só conseguem concentrar a sua atenção naquilo que não têm. São os eternos reclamões, queixosos, que se comportam como se nada tivessem, agem como mendigos, embora, muitas vezes, são possuidores de grandes fortunas. Não conseguem enxergar o quanto têm.
Uma pessoa que excursionou ao Egito, ainda nas primeiras décadas do século passado, conversou com um sábio local. Anotei seu ensinamento: “Posso medir minha riqueza pelas coisas das quais não sinto falta”.
A este respeito diz o filósofo Alexandre: “Para mim, jogar fora, abandonar, tinha a ver com a morte, com o medo, daí a tentação de conservar tudo… Hoje, o exercício espiritual consiste em aprender que essencialmente nada nos faz falta. O (bem) material não pode satisfazer as aspirações que moram no fundo do coração”.
Como se desvencilhar de todos esses poluentes, que só complicam a nossa vida? Thoreau, que viveu no século XIX, tinha como lema: “Simplificar, simplificar, simplificar”. Isto é um convite para analisarmos tudo o que possuimos, nos livrarmos do supérfluo e alcançar o essencial.
“O supérfluo é como o creme dos bolos: quanto mais tiver, pior será para a saúde”, diz o monge Matthieu.
Matthieu diz mais: “O verdadeiro rico é aquele que não é ávido do supérfluo. Aquele que vive na opulência e quer ainda mais, será sempre pobre. Acreditar que tendo mais acabamos ficando satisfeitos é enganar a nós mesmos. É como imaginar que bebendo sempre mais água não teremos mais sede”.
O apego só complica a nossa vida. Além de nos apegarmos a coisas velhas, nos apegamos também a velhos pensamentos ou a pensamentos dos outros (“eu sempre pensei assim; por que vou mudar agora?” ou “Penso como meu pai e ele era um cara legal”). Acumulamos amizades que não acrescentam nada à nossa vida e só nos tiram tempo.
Acumulamos poder sobre os outros: gostamos de controlá-los: “Se você tivesse feito o que eu disse, isto não teria acontecido com você”; “Siga o meu conselho: sou mais velho e sei das coisas”. Gostamos de nos sentir poderosos e não poupamos situações para exercer o poder, por mais insignificante que ele possa ser. Lembro-me que certa vez estava sendo atendido no caixa do banco do qual era cliente; ao terminar o atendimento perguntei ao caixa se tinha algum banheiro por ali. Ele me respondeu:
_Tem sim – indicou-me uma porta. – Abra aquela porta que você vai ver o banheiro. É para clientes. Pode ir entrando.
Fui para lá. Perto da porta estava tranquilamente parado um guarda do banco. Por pura deferência à sua pessoa, disse-lhe:
_Posso ir ao banheiro?
Ele então se modificou. Olhou-me várias vezes de alto a baixo, entrou em profundo silêncio me observando. Finalmente grunhiu, que mal ouvi:
_Pode.
O poder escraviza, não só aquele que se curva a ele como aquele que o exerce. Ambos são escravos. Um empregado frequentemente tem que fazer o que o patrão manda, independentemente de gostar de fazer aquilo ou não. Tem que obedecer às regras da “casa”, quer concorde com elas ou não. Aquele que exerce o poder tem que gastar um bom tempo dando ordens, definindo tarefas para aqueles a quem comanda, ou seja, torna-se dependente dos outros e, em grande parte, vive em função deles, embora raramente perceba isto. Cria-se um círculo vicioso, de dependência mútua, entre as duas partes, patrão e empregado.
Queremos exercer o poder, o controle, sobre o nosso cônjuge, sobre os nossos filhos, sobre os nossos amigos. Com isso perdemos a nossa liberdade e aborrecemos os outros.
Também existem os que acumulam trabalho. Vivem fazendo dezenas de coisa ao mesmo tempo. Já pensaram na energia gasta para “administrarem” tantos empreendimentos que, frequentemente, não levam a nada, a não ser correrias, afastamento do cônjuge, dos filhos, dos amigos? O universo é muito generoso e sabemos que naquilo que colocamos a nossa consciência é exatamente aquilo que o universo nos dará. Se colocarmos a nossa consciência no trabalho, teremos cada vez mais trabalho; se colocarmos a nossa consciência na aquisição de bens materiais, teremos, cada vez mais, coisas para comprar. O universo sempre nos atende. Se colocarmos a consciência na paz, na tranquilidade, na harmonia, é exatamente isso que o universo nos dará.
O monge Matthieu diz que não se deixar influenciar pelos acontecimentos externos também é um desapego. Todos nós sabemos que os noticiários de TV, de rádio, os artigos de jornais, muitos filmes, têm como objetivo só noticiar desgraças, fatos negativos e nos incutir o medo, enfim. Levar isso a sério é abrir mão da nossa vida e colocá-la na mão de tais notícias, ou seja, em concordarmos em ser manipulados. É um exercício de poder: damos o nosso poder pessoal, interior, ao exterior, ou seja, a esse mundo de “desgraças”.
Diz Matthieu: “Não se apegar consiste em apreciar plenamente os seres e as situações, mas sem querer apoderar-se deles, sem besuntá-los com a cola do nosso desejo possessivo”.
O filósofo Alexandre acrescenta: “Hoje entendo, graças à prática do zen, que o ambiente abarrotado acaba poluindo a nossa mente e nos distraindo”.
Ambiente abarrotado de tarefas, de pensamentos inconvenientes, de excesso de palavras, de apego ao passado e por aí afora, acrescentamos.
Despojar-se do supérfluo, abrir mão do poder e do controle, além de simplificar a nossa vida, é um poderoso processo de cura. Sempre que abrimos mão de algo exterior que julgamos indispensável a nós, esta ação é acompanhada de um profundo conhecimento interior; mergulhamos em nós mesmos, na essência daquilo que somos. Daí as sábias palavras do mestre taoista Tchung-Tzu, citado por Matthieu: “Quem penetrou no sentido da vida não se preocupa mais com aquilo que não contribui para ela”.
O psiquiatra Christophe acha que, para simplificar a vida, se despojar do supérfluo, os retiros podem ser bons. Nesses locais geralmente não se têm acesso à TV, livros, celulares, internet, mensagens, etc. Podemos, então, avaliar como todos esses objetos, se não usados com a devida sabedoria, podem nos escravizar e mostrar o quão supérfluo eles são. Para um retiro só levamos o necessário.
Jejuns podem ser bons àqueles apegados à comida, diz também.
Mas, também, podemos ir simplificando a nossa vida no dia a dia, analisando as nossas atividades e ir separando o joio do trigo. “Tal atividade está me levando aonde? Tal atividade me traz alegria?” são questões que devemos nos responder com frequência. É um trabalho para toda a vida, mas a satisfação, frequentemente, é constante e diária.
Deixo as palavras finais para o filósofo Alexandre: “E se começássemos pondo um pouco de ordem em nossa vida, da forma mais simples possível?”
*André, Christophe & outros. “A caminho da sabedoria: conversas entre um monge, um filósofo e um psiquiatra sobre a arte de viver”. São Paulo: Alaúde Editorial, 2016.
Escrito por: NILTON TORNERO